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Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto

Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto

Caminho de Santiago - Diários de um livro aberto - Alma de Aventureiros

Caminho de Santiago - Diários de um livro aberto - Alma de Aventureiros

Em abril de 2019, decidi fazer com o meu filho, o Caminho de Santiago, pela costa portuguesa. Esta crónica, são os diários de um livro aberto e o relato, daquela que se viria a tornar numa das maiores experiências da minha vida e numa das melhores viagens de sempre …  Pai e Filho, simplesmente lado a lado durante 12 dias; desligados de tudo e mais ligados do que nunca! Mais que caminhar em direção a Santiago de Compostela, esta foi uma viagem em busca de perdão, de reencontro e reconciliação comigo próprio … uma viagem ao interior do meu ser.

 

[ … Não importa se está a chover dentro de ti, pois o importante, é não perder essa linda vontade de ir até lá fora, brincar e viver … ]

 

Uma grande caminhada, era algo que eu já há muito tempo, sentia vontade de fazer, por diversos motivos. Assim, como uma espécie de apelo interior, ou talvez à procura de algo, que eu ainda não sabia muito bem o quê! Sentia apenas, que tinha que a fazer.

Creio que as caminhadas que fiz em pequeno com o meu Pai, terão sido um dos factores determinantes. Entre muitos outros motivos pessoais, que me desafiavam, achei que, também para mim, havia chegado agora o momento de ser eu a desafiar o meu filho e partirmos os dois durante 13 dias numa grande aventura, que não só nos iria desafiar, mas acima de tudo, seria uma forma de estarmos ligados só a nós. Pai e Filho, sem distracções, 24 horas por dia, em pleno convívio.

Depois de perceber um pouco da milenar história do Caminho de Santiago e daquilo que levou aquele Apóstolo de Jesus Cristo a fazê-lo, optei por aquele destino. Não forçosamente com carácter religioso, pois creio que, fé, espiritualidade e religião, podem ser coisas distintas. Acima de tudo, pelo desafio, pela aventura Pai e Filho e pela crença, de que esta grande caminhada, não só nos iria desafiar, como iria reconfortar um interior algo fustigado.   

Olhando agora para trás, e sempre que me perguntam sobre o que é a peregrinação, não só a nossa, mas para qualquer pessoa, estou plenamente convicto de que, independentemente do motivo, da distância ou do local de destino a alcançar; peregrinação é a viagem ao nosso interior … ao mais íntimo da nossa alma.

Caminhar muitos quilómetros, ao longo de vários dias, será talvez a melhor e a mais básica das formas, de encontramos a verdadeira paz de espírito.

Uma verdadeira TERAPIA DA ALMA, onde nos desligamos de tudo, mas em simultâneo ficamos mais ligados do que nunca.

Numa peregrinação, não há diferenças entre as pessoas … não há ricos nem pobres, não há classes, não há géneros nem raças … só pessoas; com motivos diferentes, mas com as mesmas dores, com o mesmo sofrimento, com o mesmo esforço.

Onde a cada passo, se absorvem todos os pormenores que nos rodeiam, à medida que perdemos a noção do tempo e desaceleramos, indiferentes ao corrupio quase ali ao lado, mas … tão distante.

Ao longo deste caminho, e da forma mais intimista que alguma vez escrevi na minha vida e partilhei, irei descrever o nosso dia-a-dia. A aventura, as brincadeiras, os sorrisos e também, alguns dos meus fantasmas!

Sim! Não foi só o meu Hugo que me levou a fazer o caminho; foram planos com os meus homens mais velhos que ficaram por concretizar, foi a minha ausência de mim, foram os marasmos de sentimentos acumulados … arrependimentos, mágoas dilacerantes, culpas de todos os adiamentos, culpas de não ter sabido fazer melhor, de tudo aquilo que ficou por dizer num tempo que me soube a tão pouco, e que  fisicamente já nada posso fazer, a não ser recordar, pedir perdão e esperar com esperança que, talvez um dia … quem sabe! Esperança ou fé? Não sei. Talvez sinónimos do que se sente e acredita mesmo sem se ver.

Caminhei para me reencontrar ou me reinventar … se é que isso é possível!

Caminhei até reencontrar, quem partiu antes do tempo, antes de mim …

Se não aqui, num outro lugar.

 

 


Caminho de Santiago

Diários de um livro aberto


 

 

 


🌄 Dia 1 – Porto a Labruge: 30 klmts.

[ Peregrino: aquele que percorre os campos ]

 

Dizem que quem percorre o Caminho, no final, deve-se dirigir à pequena povoação de Muxia, junto à costa noroeste da Galiza, em Espanha!

Nesse local, devem-se fazer três coisas:

– Queimar algo que tenha acompanhado o peregrino durante todo o caminho;

– Tomar banho no Oceano Atlântico e

– Ver o Pôr-do-Sol.

Diz a lenda, que quem o fizer, no dia a seguir, renasce como um Homem novo!

Apesar de estarmos habituados às nossas aventuras de mochila às costas, a verdade é que é a primeira vez, que vamos percorrer uma tão longa distância e passar tantos dias a caminhar!

Creio que está tudo pronto, planeado e treinado. O peso, dizem os entendidos que, não deve ultrapassar os 10% do próprio peso do caminheiro! Bem, entre mochila e carga, as nossas estão em conformidade.

Tudo reduzido ao mínimo indispensável, até a higiene pessoal (corpo, cabelo e lavagem de roupas), será feita exclusivamente com o velhinho sabão azul-e-Branco.

Depois do trajecto de autocarro desde Lisboa, heis-nos chegados ao Porto.

Partimos da Sé, pelas 10h30.

Existem muitas indicações do início do caminho, seja através do símbolo da Vieira, seja com setas amarelas pintadas em vários pontos. Contudo, é preciso ir com muita atenção, sobretudo dentro das cidades!

Começámos logo mal, pois passados alguns metros, já andávamos meio perdidos!

Finalmente lá demos com a Rua da Cedofeita. A partir daí tudo se tornou … quase fácil.
Efectivamente, é sempre em frente e bem assinalado, mas fomos contemplados uns bons e largos quilómetros com chuva e granizo. Mas não desarmámos.

Para ajudar, uma boa parte do troço, é feita por algumas estradas sem passeios e consequentemente, perigosas para os peregrinos.

O caminho … bem; sem querer desanimar ninguém, nos relatos dos outros, não se atribuí a devida dificuldade, mas não é fácil! Efectivamente é preciso muita perseverança.

 

Finalmente pelas seis da tarde, chegámos a Labruge.

Estamos numa muito antiga escola primária. Daquelas do meu tempo …agora convertida em Albergue.

Tudo muito simples e de forma caridosa. Dá contributo quem quer.

Perguntei quanto era o habitual. A responsável, disse-me que ficaria surpreendido; desde grandes quantias que já aqui deixaram, até a quem não deixe nada, usufrua do que há e nem um obrigado!

Alojamento humilde, assim como se procura no caminho … a humildade. Mas tem banho, camas e roupas lavadas. Colocámos 10 euros na caixa.

Curiosamente ou não, somos os únicos portugueses no meio de mais de 30 pessoas oriundas de diversos países, que estão a fazer o caminho português. O que fazem os nossos responsáveis para aproveitar este potencial turístico e melhorá-lo? Não sei.

Marcámos as nossa camas, lavámos e colocámos a enxugar as roupas, tratámos da higiene pessoal e a devida massagem dos pés e das pernas.

Por fim, o jantar e o merecido descanso … bem merecido.

Amanhã veremos o que nos espera. Estamos de rastos!

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

 


🌄 Dia 2 – Labruge a Aguçadoura: 20 klmts.

[ … O caminho, faz-se caminhando … ]

 

Bem, na realidade hoje o objectivo era percorremos 30 klmts e ficarmos um pouco mais para norte. Mas aconteceram milhentos imprevistos!

O Hugo acabou por dormir numa sala contígua à minha, com 6 senhoras, onde curiosamente nenhuma ressonava. Já eu, além da pouca falta de respeito em manterem a luz acesa até mais tarde, todos os homens ressonavam! E atenção, pois fui militar e sei o que é a “malta” ressonar. Mas uma orquestra sinfónica terrível como esta, nunca tinha apanhado! Uma noite quase sem dormir.

Saímos de Labruge pelas oito e meia da manhã e depois de um pequeno-almoço de campeões, a costa estava logo ali no final da Avenida e finalmente o início da parte deslumbrante do caminho marítimo.

Mas a sorte não nos acompanhou e pela primeira vez, como nunca antes havia visto, deparamo-nos com granizo, chuva, vento e areia; tudo em simultâneo!

Para ajudar, e como o corpo só se adapta a longas caminhadas ao terceiro ou quarto dia, foi terrível para nós dois. Pernas doridas, pés; enfim! O Hugo excede sempre as expectativas. Já eu … é incrível como o pormenor de uma unha mal cortada, nos sujeita ao aparecimento de um golpe num dedo. Resultado? Sangramento e muita dificuldade em andar; mas nada que não tenha solução.

Quanto à forma física, o Caminho já me está a revelar uma grande lição: Afinal que tipo de pessoa eu quererei ser quando idoso?! Com saúde e genica ou empenado? Posso dizer que já fui quase, quase, uma espécie de grande atleta, mas a realidade é que nos últimos 5 anos me desleixei um pouco e agora, aos poucos tenho vindo a sentir a cobrança de algumas facturas!

Mas o caminho é em frente. E este caminho marítimo, é deslumbrante e muitíssimo bem assinalado. Desde Labruge à Póvoa do Varzim, quase sempre por passadiços marítimos e aldeias piscatórias.

Ao longo do percurso, gentes do melhor e de extrema simpatia; não deixa de nos impressionar, ver desconhecidos a acenarem e nos dizerem:  – BOM CAMINHO.

São muitos os peregrinos, mas continuamos sem ver outros portugueses e mesmo o Hugo, é até agora, o único rapazito.

O cansaço, foi-se instalando e ainda bem que acabámos por perguntar nesta aldeia se havia um sítio minimamente em condições, sendo que desta vez, seria só para nós, pois precisávamos mesmo de uma noite bem dormida.

Se fizéssemos mais 10 klmts como previsto, teríamos apanhado uma autêntica tempestade que, entretanto, surgiu!

E foi assim que descobrimos esta guest-house da Aguçadoura, com uma óptima relação qualidade-preço e muita simpatia.

Agora é repor energias.

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

 


🌄 Dia 3 – Aguçadora a Marinhas: 20 klmts.

[ … No caminho és um peregrino, mas se saíres dele, consideram-te como um vagabundo … ]

 

Hoje não irei falar aqui somente sobre locais desta etapa, mas também de dois temas diferentes, sobre os quais, não pretendo de todo, ferir a susceptibilidade de ninguém.

 

 – SER HUMANO ou SER-SE HUMANO?

Ontem à noite, em Aguçadoura, estávamos realmente muito cansados. A vontade de andar, nem que fosse mais 50 metros para fora do alojamento, à procura de um local para comer, era … nenhuma.

Ao passarmos numa esquina, o Hugo reparou num mini-mercado e disse-me que podíamos tentar comprar ali alguma coisa, tipo pré-cozinhado, para fazermos no alojamento.

Apesar do mau aspecto com que estávamos, fomos cordialmente recebidos por uma senhora muito simpática e pela sua Mãe de 84 anos!

Sei agora que felizmente, não havia propriamente o que procurávamos, mas depois de feitas as apresentações, de perceberem o que estávamos a fazer e o nosso objectivo, a senhora disse ao Hugo se não preferia antes uma sopinha das dela, acabadinha de fazer! E que em casa dela havia sempre uma sopinha. Hábitos criados desde que o seu filho era um menino. O Hugo aceitou.

Trouxe-nos uma sopa para dois num tupperware, com o compromisso de o devolvermos no dia seguinte ou de o deixar à porta. Agradecidos pela generosidade, senti-me na obrigação de fazermos umas comprinhas, quando na realidade tal generosidade não tem preço. Além das compras, agradecemos com um sentido abraço e com uma beijoca.

Neste caminho, tem surgido todo o tipo de pessoas; algumas muito humanas como esta senhora. Pessoas que nos acenam, que nos dizem bom caminho, viaturas que abrandam a velocidade. Ou o caso de um Hotel de 4 estrelas, com uma entrada monumental, onde desesperados com a chuva, estivemos quase para ficar, e que apesar do nosso aspecto, fomos tão afavelmente atendidos! Gentes de um humanismo genuíno e incrível.

Mas depois, há as outras! Carros que não respeitam, não param e que pisam nas poças de água e nos molham. Outras onde entrámos para tomar algo e depois nos dizem que não têm casa de banho! – mesmo depois de deixarmos os casacos molhados à entrada e de limparmos os pés –  Ou o caso de uma chique pastelaria, que só nos mostraram um sorriso, depois de eu abrir a bolsa, verem cartões de crédito, de multibanco e notas na carteira. É assim! O melhor e o pior do ser humano.

 

 – FÉ.

Temos visto pessoas de todas as partes do mundo a percorrerem o caminho. Desde quem venha do Brasil ou mesmo do Japão, ou até mesmo monges Budistas!

A minha Fé no melhor lado do ser humano, mantém-se inabalável. Assim como a minha fé em homens e mulheres, bons de coração.

A minha Fé em Jesus Cristo; um homem … um ser humano incrível, que defendia e pregava a bondade. Tal como Buda e todos aqueles que sempre acreditaram na bondade de espírito.

Mas e a fé num Deus único?

Depois de perder um dos meus filhotes em plena flor-da-vida, o meu mundo desabou e o meu cérebro, chegou a roçar a insanidade. O certo, passou a incerto; todos os sonhos, fé, crenças e esperança, caíram por terra.

A ideia de um Deus justo e eventualmente feito à nossa imagem, desapareceu por completo. Como pode ser justo e haver tanto mal no mundo? Como existem tantas guerras, pedófilos, assassinos e tanta crueldade?!

Contudo, para mim é inconcebível acreditar na teoria do NADA!

Creio que ter fé, é acreditar mesmo no que não se vê, nem se sabe explicar. O Amor existe e não se vê.

Creio em algo superior a tudo e todos nós. Uma origem de tudo, uma origem da vida, uma origem do Universo. Creio na continuidade do espírito e que esta vida, é só uma passagem.

Talvez tudo isto seja fé! Pelo menos, a minha.

Hoje, e desde há muito tempo, voltei a entrar numa igreja.

Já caminhávamos há muito debaixo de chuva. As dores eram muitas e o Hugo já acusava algum cansaço e começou a desanimar. Surgiu-nos uma pequena e inexplicável Capela sem portas … literalmente. Lá dentro um altar magnífico com a imagem de Jesus …

Eu, que pensava já ter chorado tudo o que havia a chorar nesta vida, caí por terra, e ao final de 5 anos, ajoelhei-me.

As lágrimas escorriam-me. Pedi perdão a Jesus pelo meu afastamento.

Acendemos uma velinha e pedi forças; muitas forças para continuarmos e chegarmos ao fim. Pedi ao meu Ricardo para nos iluminar e fortalecer com coragem.

Saímos.

A chuva não parou! Porém, bastou percorrermos uns 20 metros e lá estava na estrada; um balão usado e molhado, em forma de “S ”  – a alcunha ou a forma como a família e amigos, chamávamos ao meu Ricardo …  Ricardo S!

Nem tudo na vida se explica, mas é preciso acreditar.

Sentimo-nos invadidos por uma energia incrível. A nossa força voltou e chegámos ao final de mais uma etapa. Acredito que chegamos ao fim.

Obrigado Ricardo.

Obrigado a Jesus Cristo.

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

 


🌄 Dia 4 – Marinhas a Carreço: 27 klmts.

[ … Sê como o Panda: Preto, branco, asiático e pacífico … ]

 

Dizem que os piores dias, são os 3 primeiros e foram mesmo! É quase inevitável, ao principio, dissociarmo-nos da ideia de não aguentarmos fazer o caminho todo, mas creio que é como tudo na vida, que nos propomos alcançar ou realizar; força e determinação, são as bases que nos podem evitar o sabor amargo de mais tarde nos arrependermos do que podíamos ter feito ou pelo menos tentado.

Hoje acordámos com uma certeza; se aguentámos até aqui, vamos até ao fim.

Hoje começo a narrativa desta aventura pelo fim!

Que bom que é escutar uma expressão, que há tanto não ouvia:   ” … minha Mãe, o senhor quer-lhe agradecer pelo jantar …”

Tínhamos acabado de jantar e agradeci ao jovem que, amavelmente, nos serviu o delicioso jantar e pela melhor alheira, que honestamente, já comi em toda a minha vida!

Retribuiu-me o agradecimento, mas explicou que não era ele o autor, mas sim a Senhora da cozinha. Pedi para falar com a Senhora, dirigindo-me à cozinha e foi quando fui surpreendido com tal expressão … tão bom ver os filhos trabalharem com os Pais e neste caso em particular, o trato carinhoso e respeitoso com uma Mãe!

Mas vamos então ao nosso alvor.

Depois da noite passada no Albergue paroquial de São Miguel, saímos para a rua pelas oito horas. O dia prometia, pois finalmente lá estava o Sol a nascer, bem por trás da imagem de São Miguel Arcanjo!

Hoje, quero-vos relatar três episódios:

– O SENHOR ESPANHOL.

Chegados ao café para o pequeno-almoço, já lá se encontrava um Senhor espanhol, que já é conhecido pelo … a lebre e a tartaruga! Na realidade, vim mais tarde a saber, que se trata do Senhor José, pois reparei na sua assinatura, idade e nacionalidade, já preenchidos antes de nós, a meio da etapa.

Este Senhor, é assim apelidado, porque anda muito devagar. Contudo, sabiamente, mantém uma passada firme e constante e só para por brevíssimos momentos. Todos os aceleras que partiram primeiro, com passadas largas e rápidas, mais tarde ou mais cedo, acabam por quebrar, sendo ultrapassados por senhor Tartaruga.

Encontrámo-lo já no cimo da Serra de Castelo de Neiva e acabámos por meter conversa. Disse-nos que, já fez Fátima e várias vezes, diferentes percursos do Caminho de Santiago; inclusivamente, o de França, com mais de 800 klmts! Tem 69 anos e muita experiência.

 

– A MERCEARIA DO ANTIGAMENTE.

Realmente hoje foi o dia das pessoas e temos que acreditar que, o ser humano, é tendencialmente bom por natureza.

Decidimos parar para uma pequena pausa, numa mercearia. Conversa puxa conversa, lá soubemos um pouco da sua história, da história da sua proprietária e ela da nossa. Mais uma daquelas pessoas genuínas! Disse-lhe que já não via uma mercearia assim em Lisboa, desde os meus tempos de menino; daquelas onde o grão, o feijão e o café, são vendidos ao litro e a granel; onde o bacalhau, ainda é cortado em postas. É isto que é Portugal, e que quem vem de fora, procura e nós também … tradição, identidade e autenticidade.

 

– O CASAL DA ALEMANHA.

Conhecemos este casal, com uma idade que, será seguramente bem bonita, no nosso segundo dia. Vivem na Alemanha. A Senhora é Portuguesa do norte, e de uma simpatia e energia, muito características das mulheres nortenhas. O marido, é um Senhor Alemão, que não só se perdeu de amores por ela, como agora se rende aos encantos deste nosso Portugal! Hoje, voltámos a encontrá-los … lá iam os dois de mão dada a atravessar a ponte para Viana do Castelo …

 

– AS LARANJAS.

Subíamos monte acima, curva após curva, numa estrada sem fim, cada vez mais inclinada e cafés, nem vê-los! Nem tão pouco um chafariz.  A garrafa de água de meio litro para dois, revelou-se insuficiente, mas … depois, é isto … as pessoas … ainda existem muitos anónimos, que fazem o bem sem olhar a quem!

No muro de um jardim, daquela íngreme subida, lá estavam expostas umas suculentas laranjas. Isto é humanismo! Podiam cair da árvore lá para dentro, para o chão do quintal e ali apodrecerem, mas naquele momento, souberam-nos como a melhor das coisas que poderíamos encontrar.

 

– PERDEMO-NOS.

Não sei se estávamos distraídos, provavelmente! Pois o caminho, tem estado sempre impecavelmente bem sinalizado.

De alguma forma, no meio do eucaliptal lá bem no alto da serra, quando demos por nós, já há mais de 2 klmts que não víamos qualquer indicação. Voltar para trás talvez fosse um erro  – sei agora da pior forma, que teria sido o mais acertado. Optei por descer até à linha de costa bem visível lá do alto de onde também se avistava Viana. Mal sabia que aos 30 klmts que fizemos hoje, este erro grosseiro com assinatura de Pai, nos iria acrescentar mais 7 klmts!

Talvez se tivéssemos seguido pelo caminho, não tivéssemos conhecido num café, o Senhor Fernando! E pronto; acabámos por saber que, já havia feito a pé, do norte a Fátima, duas vezes e que, agora é a sua filha que está emigrada, que quer ir a pé a Fátima com o Pai. Contou-me que a tem tentado demover da ideia, mas provavelmente, um dia o fará com ela … UM DIA …

Esta palavra; esta ideia do um dia que, ainda hoje, é um dos meus fantasmas, rebentou ruidosamente no meu cérebro. Tinha que lhe dizer … acabei por contar um pouco de mim e um dos motivos de estarmos ali e para não adiar, pois o UM DIA, poderia nunca vir a acontece!

Olhámo-nos nos olhos, apertou-me a mão e disse-me:  obrigado, tem razão!

Como eu queria não ter este conselho para lhe dar …

Como eu queria, só mais um dia …

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

 


🌄 Dia 5 – Carreço a La Guarda: 25 Klmts.

[ … A melhor parte de uma viagem, é o caminho e não o destino … ]

 

Pois é, hoje despedimo-nos de caminha e atravessámos o rio Minho da melhor maneira; numa lancha rápida, entrámos finalmente em Espanha!

Uma sensação única, ímpar e indescritível. Tal e qual como esta jornada, este caminho … este Caminho de Santiago.

Estamos a meio. Contudo já tenho uma certeza; nunca conseguirei descrever por palavras, toda a mescla de sensações dos sentidos e da alma, que evoluem passo após passo, quilómetro após quilómetro!

Quem costuma acompanhar o que escrevo nas minhas crónicas de viagens que tenho realizado, sabe que gosto de descrever pormenores de cada local, no tocante a aspetos históricos, gastronômicos e culturais de forma geral. E acreditem que, todas as paisagens que temos visto, aguçam-nos todos os sentidos, porque são de facto esplêndidas.

Contudo, não as tenho descrito e provavelmente irei fazê-lo muito pouco, pois esta, acabou por se revelar, antes de mais, como a viagem das pessoas!

Este caminho Português de Santiago, é a peregrinação … a viagem num caminho que, embora sendo o mesmo, é essencialmente o de cada indivíduo; onde cada um percorre o seu próprio caminho, até ao mais ínfimo do seu ser.

Mais um dia de muitas emoções, onde nos encontrámos com pessoas fantásticas.

Passamos uns pelos outros e dizemos:  – buen camiño. Um aceno de mão e um sorriso daqueles à séria, com luz própria. Que apesar do esforço do corpo, o sorriso brota com vontade, como que a dizer:  – estou cansado, mas há muito que não me sentia tão bem.

De quando em vez, percorremos algumas centenas de metros em companhia e trocamos dois dedos de conversa, quando se percebe que a altura é propícia à conversa. Outras, simplesmente mantemo-nos em silêncio.

Até agora, pouco ou nada perguntámos àqueles com quem nos temos cruzado. As pessoas falam, quando se sentem à vontade para falar do que as trás aqui.

Mas essa constante está lá em todas as pessoas. Os momentos de silêncio, de introspeção e os momentos que, de alguma forma, precisam ser escutadas … quando estamos abertos a escutar e sentir que nos querem escutar! Sim, porque talvez mais do que nunca, as pessoas precisam de ser escutadas.

Tecnologias, redes sociais … onde todos estamos ligados, mas creio que nunca estivemos tão desligados uns dos outros, como agora!

Hoje, encontrámos no alto de uma serra, por entre muros de antigos Solares, uma Senhora alemã. Estava acompanhada pela sua filhota de apenas 6 anos! A Senhora, caminhava com certa dificuldade e um pouco mais à frente, seguia a pequena ruivita de lindos laçarotes. Toda alegre, mochilita às costas, como se a Mãe a estivesse a levar para um parque de brincadeiras. Falámos um pouco. A barreira linguística não permitiu muito mais, mas a compreensão não veio pelas palavras, mas pelos sorrisos … pelas pausas nos olhares.

Fazia o caminho devagar, sem data de chegada, num ritmo marcado tão somente pela pequenita, numa feliz passeata!

Após o almoço, retomámos a nossa jornada, e depois de caminharmos um pouco, surgiu-nos já dentro uma pequena capela à beira da praia de Âncora, uma cara portuguesa, que já nos era conhecida. Ainda se lembrava do nome do Hugo!

Quase agonizava com os pés. As inúmeras bolhas, não a queriam deixar continuar. Disse-me que a haviam aconselhado a rebentar as bolhas! Que provavelmente iria desistir e ficar por ali.

Pedi-lhe para me acompanhar até à beira da água e disse-lhe para que de forma segura, mergulhar as pernas até aos joelhos e deixar-se ficar uns 10 minutos. A melhor das terapias em grandes caminhadas.

Acabámos por lhe deixar uma agulha e linha, expliquei como fazer com as bolhas e pedi-lhe para, acima de tudo, não desistir.

Como estava acompanhada, seguimos o nosso caminho.

 

Ao longo destes dias; ao longo do caminho, chegámos a ouvir relatos, de quem estava ali somente por lazer ou até mesmo por desporto … talvez!

Mas, entre conversas e silêncios de quem o percorre, creio que de uma ou de outra forma, por um ou outro motivo, todos carregamos sozinhos a nossa cruz.

Estamos em La Guarda.

Estamos cansados.

Estamos felizes.

Amanhã é um novo dia.

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

 


🌄 Dia 6 – La Guarda a Mougás: 21 Klmts.

[ … Uma grande caminhada, trará mais benefícios a uma pessoa infeliz, do que toda a psicologia do mundo … ]

 

A caminhada de hoje, só se iniciou já pelas dez horas, pois aqui, já é mais uma hora, e ontem foi uma etapa bem durinha, com muita chuva para a despedida de Portugal! Mas a chegada a Espanha deu-nos um pico de adrenalina incrível.

O Hugo hoje acordou meio desanimado; afinal já vamos no sexto dia!

A saudade de casa começa a pesar. O seu meio, as suas pequenas coisas do dia-a-dia, a PlayStation … ai a playstayion! Saudades do seu fiel amigo, saudades da caravana …

Mas acima de tudo, saudades da mamã. Pela primeira vez numa aventura, a Mãe não está presente.

Mas a vida é assim! Não podemos simplesmente virar costas a tudo e entrar nesta espécie de meu mundo das fantasias; embora eu ainda tenha dúvidas, ou pelos menos vontade e por vezes, quem sabe, se não é o melhor remédio, cortar com tudo o que não nos faz bem à alma!  Eu, esta espécie de marmanjo já maduro, que continua com alma de Peter Pan.

Mas para me despertar, eu tenho uma Sofia.

A Sofia é assim como uma espécie de Âncora; a minha pequena grande rocha. Dá-me lugar a estes devaneios, permitindo-me ser este tipo de aventureiro e sonhador incorrigível. Lá se habituou aos poucos, a que eu a transportasse para dentro desta minha caixa das fantasias.

Continuo a achar que cabem sempre todos cá dentro e que ainda se arranja lugar para mais, nesta minha mania de achar que, o que é bom para mim, é bom para os outros. Por vezes, como a minha Sofia diz, venço-os pelo cansaço e vêm atrás de mim … e não é que de vez em quando até acabam por gostar!

Bom, vamos lá então à caminhada.

O Hugo quando quebra, ou quando se zanga comigo, tem o seu telefonema das emergências; fica um pouco para trás (eu faço de conta que não vejo) e liga para a Mãe! Fala baixinho e faz queixas do Pai.

As Mães têm assim aquela espécie de magia própria, como um superpoder. Sim, é verdade!

Nós homens, somos um pouco mais … tipo … pois!

As Mães acabam sempre por chegar ao mesmo objectivo que nós queremos com os filhos, só que vão por outro caminho, um mais agradável.

E pronto, telefonema feito, mimo satisfeito, alma renovada e lá seguimos caminho.

Mas esta caminhada de “homens”, já deu alguns frutos esperados. Hoje falámos de tudo um pouco. Literalmente tudo. Coisas próprias de um rapazito pré-adolescente. Desde questões do sexo, a dúvidas sobre o futuro, e depois … pronto; lá fiquei a saber literalmente todos os personagens de um jogo e nomes dos mais diversos youtubers de eleição!

Estava na hora de almoçar e nada melhor do que a lindíssima povoação onde acabávamos de chegar; aliás, Oia, é uma das mais belas e pitorescas aldeias piscatórias, que já alguma vez vi!

O almoço prolongou-se com direito a vistas fantásticas.

Seguimos caminho, acabando por chegar e repousar mais cedo que o habitual, pois são ainda cinco da tarde e já estamos com banho tomado, jantados e na cama!

O que não fizemos hoje, recuperamos amanhã bem cedo, pela manhã.

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

 


🌄 Dia 7 – Mougás a Nigram: 26 Klmts.

[ … Não julgues o meu caminho, sem que antes tenhas calçado as minhas botas … ]

 

Já percorremos 161 klmts de um total de 280. Faltam 119 … e provavelmente mais 4 dias.

Hoje, pela primeira vez em 7 dias, tomamos banho numa banheira!

Parecíamos assim uma espécie de bacalhaus bem secos, a necessitar de ser demolhados! Cada um de nós, deve ter estado cerca de uma hora no banho, e sim; são estas ausências das coisas mais banais do dia-a-dia, que tornam umas em especiais e outras em supérfluas.

Foi um dia de emoções, cumplicidade e brincadeira. Mas foi também um dia com trilhos de grande montanha, por locais e paisagens sublimes e muitas amizades. E é precisamente sobre mais três pequenos episódios, que vos quero falar …

 

– O MEU PAI.

Hoje liguei para saber do meu Pai. Contei-lhe o que estávamos a fazer e expliquei-lhe que já havia contado ao Hugo, de como quando eu era pequeno, me fartava de caminhar com ele. O meu Pai deu-nos os parabéns, depois de saber de todos os pormenores, acabando por contar ao Hugo um segredo  – “Sabes, muitas vezes tinha que levar o teu Pai às cavalitas”  Depois, perguntou-me se eu ainda me lembrava?  –  “Pai, lembro-me de tudo. Nunca esqueci, nem nunca esquecerei“.

 

– A RECEPÇÃO NO ALBERGUE DE LA GUARDA.

Nunca em lado algum, nem no melhor dos hotéis, havíamos sido recebidos com tal hospitalidade! Coisas simples, mas que fazem toda a diferença  – “sejam bem-vindos peregrinos. Pousem as vossas coisas, pois estão cansados.”  disse o já idoso senhor, que se levantou, nos cumprimentou com um abraço, enquanto puxava das cadeiras para nos sentarmos.

 

– O CASAL DO PEQUENO-ALMOÇO.

La Guarda, é uma vila por onde passam muitos peregrinos e o muito respeito que existe por eles, é bastante perceptível.

Enquanto tomávamos o pequeno-almoço, um casal já com uma bonita idade, olhavam admirados para o Hugo. A Senhora lá acabou por meter conversa e saber do nosso destino.

Contaram-nos que, a última vez que fizeram o caminho, foi há 19 anos, desde ali de La Guarda. De sorriso no rosto, como se revivessem o seu momento, lá nos foram aconselhando, para nos mantermos fortes, muito unidos e sobretudo animados e com fé. Para cantarmos e inventarmos canções e brincadeiras tal, como eles o fizeram, e que assim, não nos iria custar tanto a caminhar e que no final, iríamos adorar!

Levantaram-se. O Senhor colocou-me a mão no ombro e disse-me  – “Já está tudo pago. Fazemos questão. E mesmo que não sejam religiosos, tenham fé, pois no final ao chegarem, irão encontrar o que vos trouxe aqui; o que procuram”.

De olhos lacrimejados e sem saber muito bem o que dizer, restou-me agradecer.

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

 


🌄 Dia 8 – Nigran a Redondela: 31 klmts.

[ … É preciso caminhar para se poder renovar. Parado, ninguém chega a lado nenhum, nem se encontra com nada … ]

 

Acabámos de sair da mesa do refeitório do albergue, onde comemos algumas coisas, essencialmente muita fruta, pois são óptimas para as cãibras.

Ali conhecemos um sujeito americano um pouco indelicado. Queria saber tudo, sobre tudo e sobre todos … enfim!

Aqui encontra-se todo o tipo de pessoas; muito mais do que antes, pois o caminho da Costa, encontra-se aqui em Redondela com o do interior.

 

Começámos cedo e com muita vontade de chegar a Vigo, mas mal sabíamos o que nos esperava! Mais uma vez, acabámos perdidos no meio de uma cidade e quando demos por nós, estávamos a atravessar um Centro Comercial! A única sensação e a forma com que consigo descrever é: tentem imaginar um fulano com um rapazito pela mão, os dois com um aspecto no mínimo estranho, mochilões às costas e todos suados … muito suados e completamente fora do nosso mundo; quais habitantes do mato, que desceram à grande cidade. Dois autênticos sem-abrigo. Conseguem imaginar?

Pois esses, éramos mesmo nós!

 

Só reencontrámos o caminho, depois da Polícia nos indicar um atalho.

Como eu gostava de vos conseguir descrever, ou melhor … fazer sentir tudo o que aqui se sente!

O prazer de caminhar, o desafio da superação, o contacto com a natureza e o tempo que atravessamos os campos … mesmo sabendo que as estradas e a civilização estão ali tão próximas; levam a desligarmo-nos de tudo.

A simples caminhada e o facto de qualquer pessoa se deslocar a uma velocidade de cerca de 5 klmts por hora, faz com que qualquer deslocação de uma terra para outra, seja efectivamente muito demorada. Podemos agora sentir, o como era antigamente, quando não existiam carros e só os mais abastados tinham cavalos … ir da aldeia à vila ou à cidade, era qualquer coisa!

O certo é que, passados uns dias de nos habituarmos a percorrer velhas estradas por montes, vales, aldeias e campos … além de se perder literalmente a noção do tempo (até mesmo dos dias da semana), quando se entra numa cidade, parece tudo muito confuso, estranho, acelerado e mesmo perigoso! E a única vontade, acreditem, é mesmo voltar para o campo.

 

Bom, mas tinha que compensar o Hugo de alguma forma, pois o combinado foi que no dia em que isto deixasse de ser como uma aventura ou brincadeira para ele, iríamos embora.

À falta do campo e termos que atravessar o pandemónio de Vigo, houve lugar ao descanso e à brincadeira num parque, antes de voltarmos ao caminho.

 

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🌄 Dia 9 – Redondela a Portela de Barro: 32 klmts.

[ … A viagem da descoberta consiste, não em achar novas paisagens, mas em ver com novos olhos … ]

 

Para trás, deixámos a cidade de Vigo e a vila de Redondela, voltando de novo ao contacto com a natureza. Posso dizer que já conheço alguns recantos deste mundo, mas este antigo caminho perdido no tempo, é já uma das mais belas e a melhor das aventuras das nossas vidas.

Apesar da longa etapa que nos esperava, este trajecto foi mais uma terapia para os sentidos. Pelo caminho, um imenso val, atravessado por uma estrada romana, entre uma autoestrada e uma linha de comboio! Lá em baixo, o próprio tempo parou, indiferente à velocidade de quem passa, imerso no cantar das aves e nos assobios das folhas das árvores centenárias, cobertas de musgos verdejantes. Nem um rio lhe falta! Corre forte, cristalino … saudável.

Um verdadeiro convite à reflexão.

Lancei o desafio  – “E se caminharmos descalços?”

O Hugo um pouco perplexo, aceitou. Daí a colocarmos os pés na água fresca do rio, foi um simples passo.

Energias renovadas, lá fomos à procura do nosso novo Albergue onde já nos esperavam.

 

Quando liguei, atendeu-me o Jorge, que me disse que pelas sete, haveria um jantar comunitário.

Quando finalmente avistamos o albergue, pareceu-nos o melhor dos hotéis. Estávamos cansados de andar! Fomos atendidos por um português; o Pedro, que juntamente com o Jorge, por ali fazem serviço comunitário.

Disse-nos que já não tinham camas, que o Jorge não sabia dizer que não a ninguém.

Bem, afinal, parece que nem ele, pois no meio do  – “há de se arranjar algo”, acabou por nos ceder um lugar no seu quarto!

Na sala, um ambiente descontraído, com gentes de todas as partes do mundo. As paredes, repletas de lembranças, assinalando quem por aqui passou. Sobre a mesa um panelão de sopa, salada, pão, sumos, vinho e uma bela tortilha.

Tudo ambientado com sorrisos, uma lareira e sons da minha banda de eleição, os U2 … sim, nem queria acreditar!

E nós, como não poderia deixar de ser, lá assinámos as paredes, deixando assim o sinal da nossa passagem.

 

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🌄 Dia 10 – Portela de Barro a Padron: 27 klmts.

[ … Pára de te queixar e continua a caminhar, pois amanhã, haja o que houver, será sempre um novo dia … ]

 

O inevitável cansaço, associado à ansiedade pela chegada ao destino, contrasta com toda a deliciosa aventura que estamos a viver. Nunca passei tanto tempo, deste tempo … Pai e Filho, assim, simples! Onde se perde a noção das horas, dos dias da semana e onde não há mais nada, se não o melhor da vida … estarmos junto e efectivamente escutarmo-nos.

Mas o caminho nem sempre tem sido composto por pétalas de rosa! Por vezes, entre o cansaço, os meus desafios e os dele, também surge o  – “Já nem sei porque é que vim. És mau”. Para depois voltar à solicitação do mimo ainda próprio de uma criança de 12 anos  – ” És o melhor Pai do mundo!”

 

– A ARCA DE NOÉ.

Em qualquer passeata, e desde muito pequeno que o Hugo sempre se perdeu de amores por qualquer cão ou gato que nos surja, assim como com brincadeiras de espadas imaginárias feitas de paus ou outras com pedras, quais tesouros para guardar ou mesmo flores para oferecer à Mãe.

O problema é que nunca quer deixar nada para trás, e se numa autocaravana até se torna viável, já a caminhar …. tem sido uma tarefa e tanto!

Hoje, logo pela manhã, ouvimos uns muito leves gemidos. Ali, mesmo na berma do trilho, cobertos pela restante humidade da noite; dois cachorrinhos bebés!   – “Olha Pai, e agora?“.

Alegrar uma criança e mantê-la com vontade de acabar a sua aventura, já não estava fácil, mas a responsabilidade adicional de levar ainda mais estes dois pequenos, iria-se tornar inviável; ainda para mais, que os queria levar para casa!

Confesso que na altura, também bloqueie sem saber o que fazer, mas ali não podiam ficar.

Depois de lhes darmos um pouco de água e comer, acabámos por os agasalhar no interior da minha mochila e lá continuámos.

Caminhar em direcção a Caldas de Reis, não só nos permitiu dar-lhes os nomes de Bolinha e Chuchinha, como também conversar e encontrar uma solução racional. Decidimos que o melhor a fazer, seria procurar uma instituição de acolhimento. Como não sabia muito bem como o fazer, recorri à Polícia local, que foi absolutamente fantástica. Para além de muito confortáveis condições para os receber, aqui têm parcerias com diversas instituições de acolhimento de animais abandonados, que posteriormente são dados para adopção.

Com muita pena, mas sabendo que o Bolinha e a Chuchinha estavam bem entregues, prosseguimos com a sensação de dever cumprido.

 

Chegámos a Padron, onde a decisão pelo albergue, recaiu sobre uma muito antiga Pia de Pedra, que se encontra à entrada, com uma malga de sal ao lado. Mesmo a calhar este gélido, mas convidativo e revigorante mergulho para os pés massacrados!

Não sei se conseguiremos dormir, pois a expectativa é muita. Amanhã será a nossa última etapa para Santiago de Compostela.

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 


🌄 Dia 11 – A ÚLTIMA ETAPA.

Ensaia os preparativos da tua batalha; entoa o teu melhor cântico de guerra, levanta-te, luta e grita a plenos pulmões.
Mesmo que estejas quebrado, procura-te dentro de ti … reinventa-te se preciso for! Mas nunca pares de caminhar.

 

Estamos de volta ao ponto de onde partimos.

Entrámos numa cervejaria em frente à estação ferroviária da Campanhã. O cheiro e o ambiente, não deixam margem para dúvidas. Na montra, o convite dos aromas é completado por uma panela de caldo-verde e uma larga frigideira repleta de bifanas, sobre um lume que se mantêm brando.

As taças ainda deitam fumo, mas o caldo, esse já nos aquece a alma. A rodela de chouriço ficou para o fim e fez uma bucha com a fatia de pão.

Escorre agora o molho das carcaças já ensopadas. Lambuzamo-nos. Está tudo a preceito!

Estamos no Porto … estamos em Portugal.

Procuro onde fica o terminal de autocarros.

Dizem-nos com o sotaque das gentes do norte  – “Oh Amigo, olhe que isso para ir a pé, ainda é longe. Mais de 1 quilómetro!”

Olhamos um para o outro e sorrimos. Saímos, colocamos mochilas às costas e rimos que nem loucos.

“Pai, o senhor a dizer que é longe …”

 

Passaram-se 12 dias. Caminhámos mais de 300 quilómetros e no final encontrei uma fita …

Foram as cores que me levaram a lhe pegar, mas foi naquela frase que encontrei todo o sentido. Todo o nosso caminho, todo o meu propósito, estavam ali resumidos.

 

– A ÚLTIMA ETAPA.

Padron estava adormecida. Ainda mal havíamos saído da vila e já a chuva anunciava, que nos iria acompanhar, numa espécie de teste final.

Faltavam 27 quilómetros para entrarmos na Praça da Catedral.

Com a chuva veio o frio, as pernas molhadas e os pés ensopados. Mas veio também o perigo das estradas. As travessias e as bermas, requerem cuidados redobrados.

Agarrei forte na mão do Hugo. Diz-me que já não é criança. Sente-se envergonhado!

Tenta-me largar e eu insisto e acabou por surgir o  – “Eu sei porque estás sempre com medo que me aconteça alguma coisa. Pelo que aconteceu ao mano“.

As perguntas voltam a surgir; aquelas que estiveram adormecidas e que apenas eram escutadas em parcelas.

Na sua inteligência de criança, entre murmúrios e olhares vazios, o Hugo deixou de perguntar. Sei agora que para evitar que os Pais ficassem tristes.

Entre vários rodopios ao redor do “assunto“, ao longo do caminho, a abordagem foi surgindo. Creio que acabou por ganhar coragem e no meio dos nervos, queria agora saber!

Acabei por contar os pedaços que lhe faltava compreender, pois a percepção aos 7 anos de idade, não é a mesma que aos 12.

Falo-lhe dos perigos da estrada, das velocidades e da condução perigosa. Da injustiça da justiça, perante quem provoca a morte com um carro … da minha vontade de aplicar a minha justiça e não o ter feito. Falo-lhe das más companhias.

De forma filtrada, explico quase tudo … porque o tudo, não se explica!

 

O silêncio acompanha-nos durante horas a fio, e por fim, voltamos às mãos-dadas e à conversa … daquelas conversas de Pai e Filho … 

E voltamos também às canções que nos acompanharam ao longo do caminho.

Repomos energias e volta a alegria.

Voltamos a cantar de tudo um pouco; desde “as saudades que eu já tinha da minha alegre casinha.”, “contentores” ou até mesmo das músicas dos filmes do Rocky; falamos de sonhos, de perseverança …

 

De repente, ao longe avistamos Compostela! Surge quase como uma bênção avistar as torres da Catedral.

A paragem que éramos para fazer para os últimos 5 quilómetros, foi abortada e seguimos em frente, quase numa espécie de euforia e dúvida sobre o que mais doí no corpo. O Hugo volta a dar-me a mão, sem mais me a largar …

O restante do caminho, um misto entre os mimos do menino e os cada vez mais frequentes ensaios de atitude de rapaz.

Muitos pedidos de  – “Só mais um abraço” e mais uma paragem, como que um medo da aventura estar a terminar.

 

Entramos na Praça …

Curiosamente, a alegria foi grande, mas vejo agora que, em simultâneo, se instalou a nostalgia do sentimento de que a nossa aventura, os nossos dias, as nossas brincadeiras, dores, esforço, canções, loucura … se iriam acabar!

Acreditei que fôssemos chorar sem parar, mas … afinal, todo o peso que eu sentia, percebi ali que já não o trazia. Foi ficando pelo caminho, pois o homem que partiu, seguramente não é o mesmo que chegou ao fim.

O meu Hugo … o meu Hugo foi o meu menino, foi o meu filho, mas foi também e acima de tudo, o meu GRANDE COMPANHEIRO DE VIAGEM e o meu grande herói desta aventura.

Com apenas 12 anos, entre as adversidades do esforço, da dor e das alegrias, no final sempre optou por escolher o lado da alegria, nunca se render e sempre continuar em frente.

 

Solicitamos as Compostelas; os nossos diplomas escritos em latim.

Perguntam-nos se estamos ali por motivos de religião, do espírito ou lazer …

Não existem provas científicas de que sejam os restos mortais do Apóstolo Santiago, que ali estejam, mas Santiago andou por terras de Espanha a pregar a bondade num tempo ainda muito antes da igreja e isso é um facto.

Ter fé é acreditar. É sentir sem ver, como eu senti que nunca caminhámos sozinhos.

 

Entrámos no templo. Cada um de nós, enviou a sua mensagem em forma de desejo em frente ao túmulo do Apóstolo de Jesus.

O meu?

Bem, o meu foi surgindo pelo caminho, em cada passo, em cada dor, em cada lágrima, em cada sorriso do Hugo, hora após hora, dia após dia.

O homem de quem eu me perdi de certa forma voltou. Percorro um caminho diferente, mas seguramente que caminho em frente.

 

Ao longo destes dias, falei sobretudo sobre os meus estados de alma. Gostava de tentar descrever este caminho, mas a realidade é que não o consigo fazer.

É preciso vir cá, caminhar e sentir …

Esta é A TERAPIA DA ALMA, onde nos desligamos de tudo e ficamos mais ligados do que nunca.

Onde não há diferenças entre as pessoas, não há ricos nem pobres, não há classes, não há géneros nem raças … só pessoas; com as mesmas dores, com o mesmo sofrimento, com o mesmo esforço.

Onde a cada passo, se absorvem todos os pormenores que nos rodeiam, à medida que perdemos a noção do tempo e desaceleramos, indiferentes ao corrupio quase ali ao lado, mas  … tão, tão distante!

 

Este é, O CAMINHO DE SANTIAGO!

Um caminho que, pelo menos uma vez na vida, deve ser feito.

 

📸 Caminho de Santiago – Diários de um livro aberto.

 

Chegado aqui, não só a Compostela, mas a esta etapa da minha vida, saberei mais agora do que antes sabia? Estarei mais feliz? Mais sorridente? Menos amargurado?

Creio que continuarei a ouvir os ecos das perguntas que me faziam e ainda fazem  – “Está tudo bem?”

Nunca o disse, porque sei que são proferidas com carinho; no entanto, ainda me apetece gritar que não está tudo bem, nem nunca mais estará! Creio que continuarei um homem amargurado … ou talvez, o mar revolto dentro de mim, comece a abrandar; sim, acredito que sim. Resta-me agora esperança de fazer melhor e a fé que um dia … quem sabe, o universo me conceda a possibilidade de voltar a caminhar infinitamente, lado a lado, sem mais o largar … sem mais te largar Ricardo.

 

Ninguém possui a mágica fórmula da felicidade. Contudo, tenho agora certezas que me parecem como absolutas, pois para além das nossas acções, serão muito poucas as coisas que efectivamente dominamos na vida.

Nunca saberemos quando aquele  – até logo ou  – até já, o será realmente assim.

Nunca saberemos quando um simples telefonema a meio da noite, nos poderá abrir um abismo sem fim.

Nunca saberemos quando aquele beijo, aquele abraço ou um simples olhar, será o último.

Perante o tão pouco, restam então as acções; mais do que palavras ou meras intenções, são elas que nos definem, cabendo a cada um de nós, a decisão de pesar e escolher aquilo que realmente mais importa e a forma como aproveitamos cada momento.

Resta a cada um de nós, olhar nos olhos e segurar nas mãos de quem mais amamos e dizer … fazer sentir … praticar o  – Estou aqui para ti, a ouvir-te, a observar e sentir com atenção cada gesto teu, cada palavra, porque esta é a forma que eu tenho de te amar.

 

As janelas da vida, têm um espaço e um tempo próprios. Muitas delas, só nos dão uma breve oportunidade e acontecem uma única vez. Eu perdi algumas, mas não perderei mais nenhuma.

Nesta tão curta passagem, temos que aprender a desacelerar para nos darmos tempo, pois ou olhamos o pôr-do-Sol com quem mais amamos, ou então já passou, como num sopro … numa leve brisa que mal chegámos a sentir!

 

Dedicado ao meu Ricardo;

Dedicado ao meu Rúben, que se fez homem e que diariamente me enche de orgulho;

Aos meus netos;

A toda a minha família e a ti Sofia … minha âncora, minha rocha, meu porto de abrigo:  – Obrigado do fundo do coração por me confiares o nosso menino nesta aventura, brincadeira e experiência de vida e por me teres permitido passar estas minhas pequenas ferramentas.

Por fim, dedicado a ti Hugo, meu companheiro de aventuras.

Gosto de imaginar que um dia, talvez repitas esta aventura com os teus filhos ou uma outra só tua! Talvez te recordes ou lhes contes esta história:  – “Durante muitos dias, percorri o Caminho de Santiago com o meu Pai. No final, ele colocou-me no pulso uma pulseira com uma frase … NUNCA TE RENDAS”.

 

🎥 VÍDEO DE RESUMO:

Duração aproximada de 6,23 mnts.

 

» Esta crónica, faz parte da série: Pessoas e Momentos

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1 Comment

  1. F. Reis diz:

    Muito bom. Excelente relato. Obrigado

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