Estamos no nosso terceiro dia de viagem pelo Parque Natural da Serra de São Mamede e por estas terras rainas. Talvez influenciado pelos locais fronteiriços por onde temos andado, não sei se sonhei ou se acabei por adormecer a recordar estórias de contrabandistas, contadas pela minha Avó materna, sobre o meu bisavô que chegou a fazer serviço como Guarda Fiscal, aqui pelas terras de Marvão.
Nunca o conheci, apenas vi uma ou outra foto, mas lembro-me do orgulho, com que a minha Avó, me contava estórias sobre ele e de quando lhe levava o almoço ao posto. Contava-me ser um homem de respeito, mas com bom coração. Que o meu Bisavô, chegava a andar vários dias por fora, só ele e mais outro, a percorrer a zona da raia. Fartavam-se de andar a pé à espreita dos contrabandistas! Mas que nunca fez mal a ninguém. Muitas vezes, fazia de conta que não via, e até havia alguns que lhes davam algumas coisas, para trazer para casa, para ela e para a Mãe. Dizia que eram tempos muito difíceis; chamava-lhe o tempo do pé descalço.
Motivado por esta ideia, pensei – “e porque não?”
Estava decidido! Este seria o mote da minha caminhada e estava apostado em tentar de alguma forma, vivenciar e perceber um pouco mais sobre aqueles tempos e sobre aquele modo de vida.
A poucos metros de mim, encontra-se um senhor numa horta, a cuidar dos animais e lá decido meter conversa. Não sei bem como abordar o assunto, pois poderei estar a ser indelicado, porque na realidade, o tema do contrabando, poderá ainda ser tabu!
Pergunto-lhe se conhece alguma das antigas rotas, utilizadas no tempo do contrabando. Sem se querer aprofundar muito, lá acabou por me explicar que, geralmente, saiam lá mais de baixo, em Galegos, mais próximo da fronteira, mas que existiam muitas e quanto mais escondidas, melhor eram. Indica-me que uma delas, está precisamente à minha frente; seguindo monte abaixo, quase sempre em frente em direcção a Fontanheira, atravessando o Rio Sever.
Costumo ter alguns cuidados básicos antes de iniciar uma caminhada, pois preocupo-me com os indispensáveis, como a mochila, água, alguma coisa para comer …
Contudo, desta vez, sem saber a distância, quanto tempo ou dificuldades que irei encontrar, subo ao alto do rochedo, olho em frente e coloco-me ao caminho. Assim, sem tão pouco levar carteira ou telemóvel, tão somente uma pequena máquina fotográfica.
O terreno é duro; tão duro como os gigantes de granito, que se empoleiram uns sobre os outros, como que a desafiar a gravidade, conferido à paisagem, pormenores de singularidade e de autêntico espectáculo da natureza.
À medida que vou descendo, vão surgindo alguns finos e desfolhados castinçais, cobertos por húmidas turfas. O adensamento destas árvores, cada vez maior, torna o meu percurso, numa travessia de um pequeno bosque virgem, repleto de cores vivas que alternam as suas tonalidades, entre o verde e o cinzento. Também aqui, os pés dos gigantes rochosos, deixam-se cobrir por musgos e turfas.
O silêncio quase absoluto, só é interrompido pelo meu caminhar, levando-me a imaginar, como outrora seria uma regra de ouro que não podia falhar! Onde guardas e contrabandistas, se escondiam na penumbra da noite, unicamente iluminados pelas estrelas ou por uma noite de luar.
Atravesso agora uma zona mais plana, calculando que talvez este, já não fosse o melhor caminho para o meu papel de contrabandista! Mudo a minha direcção.
Estou de novo a coberto; desta vez por soutos e sobreiros e conforme avanço, torna-se cada vez mais inconfundível o som que marcará a minha travessia de uma das mais antigas fronteiras europeias; esta linha ou raia, como também é por aqui chamada. As águas baixas do Rio Sever, parecem-me puras e cristalinas, pelo que mesmo com pouca água, mato agora finalmente a sede e refresco a cara e a alma … estou em Espanha!
Entro em Fontañera. Sinto-me como uma espécie de astronauta, aqui caído fora de contexto, numa pequena aldeia! Se tivesse uma mochila, seria um caminheiro, mas assim, só com uma pequena máquina na mão, ocorre-me dizer a quem passa: – venho em paz.
Tirando a placa com o nome do local e as duas bandeiras que esvoaçam abraçadas, não é fácil perceber que estamos noutro pais. Aqui não há nenhum daqueles modernos marcos sinaléticos ou qualquer ponte ou estrada, marcadamente fronteiriços. Nem tão pouco a língua soa notoriamente diferente, pois ao escutar as suas gentes, escuto esta espécie de língua comum … o portunhol.
Conforme começo a fotografar, vejo que sou observado de forma atenta por um senhor, sendo que desta feita, não sou eu que introduzo a conversa.
Pergunta-me se é a primeira vez que aqui venho e acabo por lhe explicar o meu propósito desta caminhada improvisada.
Explica-me que a casa por onde passei, está em Portugal e que esta logo aqui, já está em Espanha, e que curiosamente, a outra casa que é um hostal, está metade de um lado e metade do outro, mas que é tudo a mesma coisa, que aqui não há diferenças, são todos família e amigos de um lado e do outro e que sempre assim foi e sempre assim há-de ser.
A conversa foi-se desenvolvendo e lá acabou por me explicar, que por aqui, tanto de um lado como do outro, quase todos eram contrabandistas; homens, mulheres e até as crianças: – “Agora já não há os guardas fiscais de Portugal, nem os carabineiros de Espanha e podemos andar livremente. Procurar trabalho em Portalegre ou em Valência de Alcântara, por exemplo. Nos tempos dos mais velhos como eu e dos meus pais, havia muito pouco trabalho; eram só os campos. Éramos todos pobres e o contrabando dava bom dinheiro.
De Portugal, traziam o que não havia em Espanha e de Espanha, levavam o que não havia em Portugal. Muitas vezes, o que fazia a principal diferença, era o preço das coisas, sabe! Se em Portugal uma coisa era mais barata, nós conseguíamos vendê-la cá em Espanha nos mercados e ainda ganhávamos algum dinheiro, está a entender? No fundo era isso! Fugir aos impostos é que dava algum dinheirito. Mas não éramos criminosos nenhuns, era a vida que era assim, naqueles tempos.
Quem ganhava mais com isso, eram os patrões, aqueles que organizavam o contrabando. Aqui o que dava mais dinheiro, era o café que vinha de Portugal e às vezes, até algum bacalhau! Eu chegava a ganhar só numa noite, cerca de 15, 20 ou 30 escudos por carregar uns 200 quilos de fardos de café de Portugal! Trazíamos o café e para lá, levava-se encomendas mais pequenas; loiças, remédios, roupas, rebuçados … muitas coisas. Mas era muito duro. Tínhamos que andar muito e sempre de noite. Para fugir aos guardas, tínhamos que rastejar ou outras vezes, passávamos as coisas à formiga. Quer dizer; éramos uns 6 ou 10 de cada vez, mas não andávamos muito! Cada um fazia um trajecto e ia passando para o outro a seguir, e se os guardas aparecessem, tínhamos que largar tudo e fugir, pois, se largássemos tudo, eles só davam uns tiros para o ar, não vinham atrás de nós e levavam as coisas e mostravam serviço.
Havia um ou outro ruim, mas a maior parte, já nos conhecíamos todos e não nos faziam mal; até porque principalmente os guardas portugueses, ganhavam muito pouco e alguns coitados … de vez em quando, lá íamos presos, passar uns dias até Alcântara!
Era assim! Tinha que haver respeito e cada um fazia o seu papel.”
Não sei quanto tempo estive à conversa com aquele senhor, pois senti-me a viajar para uma realidade diferente, vivida aqui nestes mesmos lugares.
Agradeci-lhe e despedi-me, e vejo agora que, talvez pela primeira vez, tenha estado tanto tempo a falar com alguém, sem sequer sabermos os nossos nomes, e aqui neste caso em particular, vim-me embora sem saber se afinal, era português ou espanhol, mas com uma certeza … afinal, isso não interessava nada!
📸 Estórias de Contrabandistas por Terras Raianas de Marvão.
Este artigo, faz parte do nosso roteiro de viagem no Parque Natural da Serra de São Mamede.
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1 Comment
Muito boa matéria! Esse tema é sempre muito interessante.