Chamam-lhe Mar da Palha, invocando um tempo distante, em que as águas do Tejo, transportavam restos das palhas caídas, quando eram trazidas das searas, em barcos que abasteciam Lisboa e outras localidades das margens a montante do rio.
Mas agora, já não há vestígios das palhas de outrora, nem dos barcos que as transportavam. Agora, há o lodo que esconde as ameijoas e outros bivalves … agora, há uma romaria de mariscadores que aqui vêm todos os dias, em busca do seu sustento.
O cenário, lembra-me o final de uma jornada de trabalho dos agricultores dos campos … sim, poder-se-ia assemelhar a um campo de palha e ao momento da sua apanha; só que não se trata de um campo de cultivo, mas sim do estuário do Tejo!
Começam por chegar em pequenos grupos, depois às dezenas, que num curto espaço de tempo, se tornam em centenas … talvez mais de mil!
São homens e mulheres que, equipados com galochas e fatos de mergulho, transportam ganchorras, redes, baldes e até enxadas.
Caminho ao longo de um cabeço, que me leva até aos alicerces da Ponte Vasco da Gama e percebo que já não tenho muito tempo para ali estar, pois a maré, avisa que é hora de voltar.
Trouxe-me aqui a minha busca pelo Tejo e a vontade de compreender este modo de vida, mas quando tento dialogar, escondem o rosto, dizem que não querem fotografias e que não falam português. A muito custo, e depois de explicar o meu propósito, algumas mulheres lá me vão autorizando a captar imagens, mas sem darem a cara e nem revelarem os seus nomes. Por fim, uma senhora que se encontrava ajoelhada, acede em ser fotografada, e num português pouco fluente, diz-me – não tem problema. Explica-me que veio da Tailândia e que o que faz, não é muito diferente do que fazia lá nos arrozais; só que aqui, ganha mais um bocadinho.
– Apanho à mão. Demora mais. Mas assim não estraga!
À medida que me afasto, cruzo-me com dois senhores, já de idade avançada; são portugueses. Um, a muito esforço, transporta uma mochila às costas e um balde em cada mão, tudo repleto de ostras. O outro, uma saca com lingueirão.
Já junto à margem, acabamos a conversar um pouco. O senhor “Manel” (nome fictício), lá me foi falando um pouco de si, explicando-me que, o que trás, é só para uma patuscada de fim-de-semana com alguns amigos.
– Isto aqui, não é para vender, é mais uma brincadeira e um passa-tempo, mas pronto; de vez em quando, também dá algum dinheirinho; sabe como é … a reforma é uma miséria e isto, sempre me dá mais uma pinguinha!
Há uns anos atrás, o rio dava mais peixe … fanecas, linguados e muita enguia, e não é que não houvesse marisco, mas não havia aqui tanta gente na apanha. Agora há a ameijoa japonesa … sabe, acho que ninguém percebe como é que elas aqui aparecerem! Há quem diga que foram os pescadores que as espalharam para ela pegar … mas eu não acredito, isso não é verdade. Apareceram, porque o rio ficou diferente!
Depois, começaram a vir estas pessoas de fora. Há por aí gente de todo o lado; ao princípio, muitos eram só da Roménia, mas agora também já vêm da Tailândia. São pobres coitados como nós. A gente sabe que isto é ilegal, mas o que havemos de fazer? Esses coitados então, são muito explorados. O mariscador, farta-se de trabalhar e chegam a vir para aqui duas e três vezes ao dia, ou até mesmo de noite com lanternas e a arriscar a vida. De vez em quando, lá fica um que não volta.
Quem compra, dá pouco dinheiro e depois vendem por muito. Dizem que muita coisa, vai daqui para Espanha e depois lá, as ameijoas são tratadas e vendidas como se tivessem sido apanhadas por lá, está a perceber? É um negócio rentável só para alguns. Quem apanha, vive mal.
Muitos vieram para Portugal para trabalharem no Alentejo na apanha da fruta, outros nas obras, só que depois, com as crises do nosso pais, acabaram por ser recrutados … do tipo, passa-palavra, por aqueles que querem ter gente na apanha. Os lá da Ásia, então, são uns pobre-coitados; alguns nem papeis têm e ainda têm que pagar para viverem nuns barracões. Coitados, acho-os todos simpáticos e elas também. Lá fora já eram pobres e vieram para aqui à procura de melhor e, sabe como é; para quem já era pobre, qualquer coisita a mais e já dizem que é bom. Mas dizem que dá para viver e ainda mandarem alguma coisinha lá para fora, para a família … não sei. Tenho pena dessa gente.
De quando em vez, lá aparecem as autoridades e apreendem quase tudo; até a eles e elas os levam. O marisco, voltam a mandar ao mar, lá mais para distante, mas depois, vêm outros com equipamentos para mergulhar e voltam a apanhar. É um jogo do gato e do rato.
Dizem que o marisco aqui não presta, por causa do rio estar poluído, mas eu não acredito. Creio que isto é tudo só por causa das licenças, que nem sequer as passam, e por causa dos impostos.
Antigamente, há muitos anos, já havia o cultivo e a apanha das ostras do Tejo e depois eram todas tratadas ali no Rosário, mas acabaram com isso tudo e agora é assim.
Olhe, o que lhe digo, é que no meu caso e deste amigo, as reformas não dão para nada e as pessoas têm que viver e antes isto do que roubar!
Tejo – Mariscadores de um Mar de Palha
Este artigo, faz parte da série de crónicas ” Ao longo do Tejo “. Próxima paragem: Praia do Moinhos, em Alcochete.
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