Sofro assim de uma espécie de encantamento sempre que oiço uma flauta de pã … aquelas, as conhecidas por gaitas dos amoladores, pois sempre que ao longe me apercebo do seu som e sem saber muito bem o porquê, fico arrepiado e ainda corro para a janela.
Mas … afinal, eu até sei o porquê. É assim como um chamamento do passado; algo que me chama e transporta para dentro de mim, a memórias bem gravadas da minha infância.
Aquele som característico, que oscila e desliza rapidamente das notas mais baixas para as mais altas, seguido de um refrão tão popular … “ Amoladooooor “; transporta-me para algures entre os meus cinco e os oito anos de idade.
Regresso muito em particular para uma pequena Praceta … para um local especial, que me coloca de novo numa janela do rés-do-chão direito do número 13 da Rua 1º de Maio, no velhinho Bairro da Damaia de Cima.
E é isto … de repente, eu o pequenito loiro de cabelo encaracolado, estou novamente ao lado da minha Bisavó Margarida; os dois sentados naquela janela da sala, a contemplar quem passa pelo passeio …
“Bom dia vizinha”.
“Bom dia Dona Margarida”.
Aquela janela, para mim na altura era como o melhor dos televisores com vista para um pequeno mundo que era a Praceta em frente.
Muitas das minhas férias eram ali passadas. Pela manhã e depois do banho tomado, abriam-se de par em par as portadas de madeira, seguidamente as janelas de vidro e por fim, o estore exterior também em madeira … daqueles, que davam para dobrar para cima e fazer como que um pequeno telheiro.
Recordo-me que para lá chegar, a minha Bisavó colocava-me empoleirado numas poucas de almofadas de palha, equilibradas sobre uma cadeira.
E pronto … por ali nos prolongávamos entre mimos e dois dedos de conversa com quem passava.
O que tem tudo isto a ver com o João Amolador?!
Bem, certo dia, estava a minha Bisavó a transportar água desde o fogão da cozinha para encher a banheira da casa de banho (sim, porque essas coisas dos esquentadores, eram coisas das gentes com mais dinheiros) e eis que aquela que era a maior das panelas, começou a verter. Tinha um furo por baixo.
Os tempos eram outros; tempos em que nada se mandava fora. Muito diferente de agora. Naquela altura mandava-se arranjar … sim, porque também havia todo o tipo de artificies; alguns mesmo, verdadeiros mestres. O dinheiro, esse podia até ser escasso, mas profissões, trabalho e vontade de trabalhar, creio que não faltavam.
Lembro-me da minha Bisavó ter ficado muito aflita e simultaneamente arreliada. Mas de repente, apercebo-me de um som que eu nunca antes havia escutado!
Ela apressa-se em despejar a água e eu sem saber o que se estava a passar, só a vejo a abrir as portadas e a janela …
“Oh Senhor; espere aí. Venha cá. Não se vá embora que desço já.”
Muito à pressa, calçou-me umas pantufas, pegou na panela e saímos para a rua … e lá estava!
Não me recordo com precisão de para onde o meu olhar se fixou primeiro, se naquele Senhor, se na espécie de geringonça que ele empurrava.
A minha Bisavó lá lhe explicou que pretendia arranjar a panela e que se ficasse em condições, ia a casa buscar uma ou duas facas para ele afiar.
Quase como que do nada e num ápice, aquele homem “articulou” a tal geringonça ao contrário, ficando a enorme roda de madeira, agora suspensa nos suportes por onde ele antes a empurrava.
E vai de tirar apoios e ferramentas e toca de martelar na panela.
Vira de um lado e vira do outro, sobre o meu olhar espantado e o atento da minha Bisavó, e pronto … obra feita.
Já rendida à perfeição, lá decidiu trazer então as facas de cozinha, o que foi mais um encanto para mim, ver aquela pessoa a pedalar assim como numa espécie de máquina de costura ou bicicleta com uma roda de carroça, sem sair do lugar. Girava a roda e com ela, ligada por uma cinta, girava um esmoril por onde habilmente, deslizava agora de um lado para o outro uma faca após a outra.
O trabalho estava concluído.
Arrumou tudo, virou de novo a sua oficina e levou a mão ao bolso.
Eu já de mão dada com a minha Bisavó Guida, continuava a observar e tentar compreender o que se iria passar a seguir.
Foi então que aquele som surgiu novamente! Saía de uma pequena flauta tocada pelo amolador, que se afastava enquanto descia a rua, sendo contemplado pelo meu olhar de criança.
Saudades Avózinha … saudades de si, saudades de tantas coisas.
—
O João.
Conheci o João há cerca de uns quatro anos. Recordo-me de ser uma tarde de um Domingo de muito calor. Encontrava-me no terraço a regar as plantas, quando pela primeira vez na minha rua, ouvi de novo o chamamento da flauta de Pã.
Apressei-me em chamar o Hugo, pois queria que ele visse, como eu vi, o que é um Amolador.
O Hugo, também ele perplexo pelo som, foi espreitar do que se tratava.
Peguei em duas ou três facas e saímos.
Naquela altura, o João era apenas um rapazito, que não teria mais que uns 16 anos. Acompanhava o seu Tio, que empurrava uma bicicleta com uma mala de ferramentas na parte de trás. Também era o Tio que entoava a Flauta.
O João, parecendo um pouco acanhado, quase nada falou, denotando algum ar algo envergonhado de ali estar. O Tio lá nos foi explicando, que o João o acompanhava e que assim se mantinha ocupado e longe de más companhias, e que em simultâneo, poderia aprender uma profissão.
O tempo foi passando. Por vezes ouvia de novo o som da flauta e em algumas ocasiões, o Hugo até me chamava mas os desencontros foram ocorrendo. Entre os momentos em que vinha ao terraço e eles já iam longe ao fundo do Bairro e outros desencontros, passou-se muito tempo em que deixei de ver o João e o Tio e de escutar aquele som.
Um som, que com o passar dos anos se transformou para mim em nostalgia, pensando muitas vezes, que chegará um dia em que não existirão mais Amoladores com as suas flautas de Pã.
Finalmente, há poucos dias atrás, ouvi-o de novo … lá vinha ele.
Desta vez o João estava sozinho. Empurrava vagarosamente a bicicleta pelas ruas quase desertas do Bairro. Era agora ele quem dava vida à flauta de Pã.
Num primeiro vislumbre fiquei triste, pois as pessoas dentro das suas casas, não vinham às janelas … muito menos à rua. Pareciam indiferentes ao chamamento e encantamento do toque da flauta.
Peguei numas facas de corte e numa muito especial; uma antiga faca de cabo de madeira, prenda de muitos anos da Avó da Sofia.
Não porque as facas precisassem propriamente de ser afiadas (sei agora que afinal até precisavam), mas tão simplesmente só porque sim, ou porque talvez me sentisse compelido a isso.
Desço à rua … vejo que o João é agora um homem já com barba.
Entre o preparar da sua bicicleta e o amolar das facas, fomos falando um pouco. Perguntei-lhe pelo Tio e o João contou-me que já tinha falecido! Não sabia se havia de perguntar mais alguma coisa sobre a vida do João e por breves momentos, ficámos em silêncio, só acompanhados pelo som do deslizar das lâminas no esmoril e o som da correia da sua já desgastada bicicleta.
Com o seu olhar pacato e singelo, o João retoma a conversa e lá me foi falando um pouco daquele dia, de si … um pouco da sua vida.
Contou-me que naquele dia, eu era o seu primeiro cliente e que já havia saído do Barreiro de manhã, assim como faz inúmeras vezes. Uns dias percorre para um lado, outros dias para outros lugares, outras povoações, outros Bairros, sempre em busca de clientes; clientes esses que cada vez são menos, perante um esforço de quilómetros, seja ao calor ou à chuva.
“Sabe senhor, gosto disto. Há muitos da minha idade que se calhar teriam vergonha. Eu não. Eu gosto disto. Foi o que aprendi a fazer … o que o meu Tio me ensinou. Muitos não compreendem porque faço isto, acho eu … mas antigamente e … até mesmo agora é uma profissão como outra qualquer.
Eu fui muito pouco à escola. Não gostava e … acabei por nunca aprender a ler nem escrever. É assim a vida.
Agora sou só eu e a minha Mãe e … eu tenho que a ajudar; tenho que levar a “bucha” para casa.
Só tenho pena é porque se anda muito e infelizmente agora há pouco trabalho. Já ninguém manda arranjar nada. Preferem mandar fora, sabe!
Mas pronto, faço o que gosto e vou andando por aí, falando com as pessoas. Sabe … pelo menos não anda ninguém atrás de mim e não ando metido em problemas como eu vejo muitos da minha idade. Posso não ganhar muito mas ajudo a minha Mãe e não devo nada a ninguém”.
Decidi perguntar-lhe se o podia fotografar e se não se importava que contasse um pouco da sua história, ao que ele ainda um pouco tímido e com um sorriso, acedeu.
O João diz-me que terminou, e com orgulho, pega num pedaço de papel e depois numa borracha e corta-as com as facas que acabou de afiar … sem dúvida, agora muito melhores.
Paguei o serviço do João. Eram duas da tarde. Disse-me que ia agora finalmente comer qualquer coisa.
Despedimo-nos.
O João tem 21 anos. Tem um aperto de mão firme que se complementa com um olhar sincero.
O João não tem Facebook ou Instagram nem tão pouco internet.
Mas tem uma coisa; o João é um artificie.
Daqueles artífices de mão cheia e com enorme orgulho na sua profissão.
Talvez fosse bom se o João ainda aprendesse a ler e a escrever. Talvez … sim de facto.
Mas o que o João precisa mesmo, é de quem ao ouvir a Flauta de Pã, desça à rua e lhe dê facas e tesouras para ele trabalhar.